sábado, 27 de fevereiro de 2010

Emancipação humana: objetivo dos comunistas.

Em “A questão judaica”, artigo de 1843, Marx desenvolverá toda sua reflexão em torno do problema da possibilidade de emancipação humana. Segundo ele, “Toda emancipação é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem.” A emancipação é, em termos hegelianos, a “identidade da identidade e da não-identidade” entre sociedade e indivíduo. Assim, o homem é um fim em si mesmo: a produção material e espiritual do conjunto dos homens deve servir aos próprios homens. No entanto, as relações humanas sob as formações sociais regidas pela apropriação privada dos meios e dos produtos da produção social alcançaram, na sua particularidade capitalista, o máximo de emancipação possível: a emancipação política.
Segundo Marx, “A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral”. A emancipação política é uma conquista da sociedade burguesa, ela permitiu ao indivíduo seu reconhecimento enquanto indivíduo, no entanto, devido às relações de mercado, apenas enquanto “indivíduo egoísta” ou, como escreveu em “O Capital”, um “guardião da mercadoria”, tanto o burguês, dono do capital, quanto o trabalhador, dono da força de trabalho. Enquanto indivíduo segue seus interesses mesquinhos, fazendo da sociedade apenas um meio para benefício próprio.
Por sua vez, esse mesmo indivíduo apresenta uma outra personalidade, a do cidadão, “pessoa moral”. Aqui, ao invés da manifestação imediata dos interesses mesquinhos de proprietário privado, há o indivíduo que se relaciona com os interesses públicos. A emancipação política é uma conquista importante da revolução burguesa contra a feudalidade, pois já não pertence ao senhor como escravo nem à terra como servo, mas através da cidadania o indivíduo pertence a um determinado Estado de direito, no qual se reconhece pertencente a uma coletividade que transcende aos seus interesses privados, mas ao mesmo tempo é o meio que lhe assegura e legitima esses mesmos interesses de vender ou comprar força de trabalho por um determinado tempo. Daí que Marx afirma: “Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa”.
A emancipação política além de emancipar o indivíduo para o livre mercado libertou o Estado da religião. O Estado laico foi importante para a burguesia revolucionária devido, dentre outros motivos, a tendência genética do capitalismo à mundialização das relações de mercado. O problema, diz Marx, é que a emancipação humana não emancipou o indivíduo da religião. “Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial”. A emancipação política acabou com o patriarcalismo da sociedade feudal fundada no “privilégio” e na tradição e o seu Estado religioso, e criou o meritocracismo e o sonho da mobilidade social através da “livre iniciativa”, hoje conhecida como “empreendedorismo”. Assim, pode Marx afirmar que “O Estado democrático, real, não necessita da religião para seu aperfeiçoamento político” e o indivíduo não precisa se libertar da religião e continua cristão, judeu, islâmico, budista, etc, o Estado se torna “o mediador para o qual desloca toda sua não-divindade”.
Com as novas características do capitalismo pós-1848 e, em especial, o capitalismo monopolista, ou imperialista, do fim do século XIX aos nossos dias, existem formas "híbridas" de Estados que, ao mesmo tempo burgueses, são teocráticos. A relação entre religião e política toma outra qualidade, que apenas poderemos tratar em outro texto.
A emancipação humana é a emancipação mais radical que nossa época, a sociedade capitalista, possibilita. Para Marx, a emancipação humana só se realiza quando “o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ [próprias forças] como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana”. Em outras palavras, é preciso superar a abstração da cidadania que projeta no Estado a coletividade, para viver essa coletividade na prática cotidiana através do trabalho livremente associado. Com a emancipação humana, as próprias forças individuais, enquanto forças sociais, já não se alienam do indivíduo na forma de força política, o Estado, mas, sob a autogestão da produção/reprodução da sociedade, se manifesta como força social através de sua livre associação com os demais trabalhadores.
Marx afirma no “Manifesto comunista” que o Estado é o comitê através do qual a burguesia organiza seus interesses coletivos. É o lócus da política. Ao contrário do que se pensa desde a tradição grega, a política não é a administração pública para o bem comum, mas sim o exercício do poder do homem sobre o homem. A emancipação humana, portanto, acaba com as relações de poder, daí que Engels, na introdução ao panfleto de Marx “A guerra civil em França”, afirma que, na comuna de Paris de 1871, já não se podia falar em Estado, pois este dava claros sinais de esfacelamento. Nesse mesmo texto, Marx afirma que, com o fim da política e das classes sociais, o trabalho produtivo deixa de ser característica de uma mesma classe e, sendo uma sociedade sem classes, para a ser característica de todos os indivíduos: “Uma vez emancipado o trabalho, todo homem se torna um trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser o atributo de uma classe”. Para os que pensam que isso nada mais é que utopia precisam conhecer a história dos conselhos de fábricas ocupadas na primeira metade do século XX na Rússia, Alemanha, França, Itália, etc; recomendo também que conheçam as experiências dos “canteiros livres” nas construções civis através do arquiteto e artista plástico Sergio Ferro; ou mais radical ainda, a experiência chilena de 1973, através do filme “A batalha do Chile”, em especial a parte 3 que trata do poder popular. Através do poder popular organizado, os trabalhadores chilenos realizam o germe da revolução comunista. Numa cena interessantíssima, após a fuga dos patrões e dos intelectuais (engenheiros, etc) de diversas fábricas, são os próprios trabalhadores que iniciam o pensar e o agir da produção e da circulação de bens de consumo e meios de produção, o que abre a possibilidade do fim da divisão do trabalho intelectual e manual. Além disso, o estudo da comuna de Paris é imprescindível.
Uma síntese das idéias de Marx e Engels acerca do Estado, da política, da democracia e da revolução comunista pode ser encontrada na brochurinha de Lênin “O estado e a revolução”. Um escrito que, aliás, pode ser utilizado na própria crítica ao Estado soviético, pois a diluição do Estado burguês se inicia com os trabalhadores organizados em armas, que é a crítica prática ao Estado em Geral e não apenas ao Estado burguês. Assim é que Engels nos fala, como já citado acima que não se trata mais de Estado, mas de uma verdadeira comuna. O objetivo dos comunistas, de tradição marxista, deve ser a emancipação humana: uma organização social fundada na livre associação dos trabalhadores. Esse é um debate que a esquerda precisa fazer para que não seja surpreendida pela história.

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