domingo, 31 de janeiro de 2010

Da revista Caros Amigos



Crise fictícia, recuo verdadeiro

Veto dos comandantes militares, amplificado pela mídia, faz Lula mutilar projeto da “Comissão da Verdade e Justiça”

Por Pedro Estevam da Rocha Pomar

O lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em sua terceira versão, terminou por desencadear uma das mais abjetas ofensivas da direita sobre o governo Lula e os movimentos sociais organizados. Estes últimos mobilizaram-se e, de certo modo, conseguiram reagir, unificando a esquerda partidária, sindical e social em defesa do PNDH 3 e em desagravo ao ministro Paulo Vannucchi. Atos públicos em todo o país marcaram o “Dia D”, 14 de janeiro, em enérgica resposta aos defensores da Ditadura Militar, ao agronegócio e à mídia hegemônica.

Mas a réplica do governo aos ataques da direita ficou muito aquém do necessário. Lula limitou-se a “pacificar” o ministro Nelson Jobim, da Defesa (principal autor do “fogo amigo” na Esplanada dos Ministérios) e a obter novas concessões de Vannucchi. O presidente designou, por decreto, um grupo de trabalho que vai preparar o anteprojeto de lei destinado a criar a Comissão Nacional da Verdade, encarregada de apurar os crimes da Ditadura Militar, mas as mudanças realizadas no texto original, por pressão dos chefes militares, diluem suas chances de êxito. A expressão “repressão política” foi substituída por “repressão”...

Desse modo, a “rebeldia militar” encorajada por Jobim e amplificada pela mídia (a suposta ameaça do ministro e dos comandantes das três Armas de virem a pedir demissão) resultou em novo recuo de Lula. A indisciplina de oficiais-generais que contestam abertamente o governo legítimo e democrático ao qual devem obediência deixou, mais uma vez, de ser punida — ao contrário, foi premiada. Assim, a única conclusão possível, ao analisar-se o retrospecto do relacionamento entre o governo e as Forças Armadas ao longo do governo Lula, é de que, ainda que a alegada “crise militar” tenha sido fictícia, forjada pelos meios de comunicação, persiste a “questão militar”, ou seja, não está equacionado o papel que cabe aos militares no Brasil.

Poder civil?
A mentalidade e o modus operandi da cúpula militar não mudaram. Todas as crises surgidas desde 2003 revelaram a incapacidade das Forças Armadas de submeterem-se plenamente ao “poder civil” — que, diga-se, nada mais é do que o governo eleito numa democracia representativa, liberal. Assim foi na episódio da descoberta de fotografias que retratariam no cárcere, pensou-se, o jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 1975 no DOI-CODI do II Exército (hoje Comando Regional do Leste). Na ocasião, o Centro de Comunicação Social do Exército emitiu uma nota torpe, ofensiva à memória dos que enfrentaram a Ditadura. O ministro da Defesa, José Viegas, recomendou a Lula que demitisse o comandante do Exército. O presidente preferiu demitir Viegas.

Durante a “crise aérea”, em 2007, o governo negociou com os controladores militares de tráfego aéreo o fim da greve da categoria, prometendo-lhes, por intermédio do ministro Paulo Bernardo, que não haveria punições. Mas, encerrada a greve, o comando da Aeronáutica realizou um verdadeiro expurgo, que atingiu mais de uma centena de controladores com transferências punitivas, prisões e expulsões. Além de descumprir sua promessa, o governo manteve o controle do tráfego aéreo civil na alçada da Aeronáutica (o Brasil é um dos raros países do mundo em que este setor não está na esfera civil).

Depois disso, novas manifestações de indisciplina da cúpula militar foram registradas, sem que o governo respondesse. A Marinha criticou a inauguração, por Lula, de uma estátua em homenagem ao marinheiro João Cândido, o homem que liderou a Revolta da Chibata em 1910. O comandante militar da Amazônia, general de exército Heleno Pereira, atacou com virulência a política indigenista do governo brasileiro (não por sua insuficiente assistência aos povos indígenas, mas por sua suposta generosidade) e a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, fazendo côro com os “arrozeiros”.

Apesar da audácia dessas críticas, nenhum chefe militar foi punido. E as Forças Armadas continuaram operando seus lobbies contra a abertura dos arquivos da Ditadura e a localização dos restos mortais de guerrilheiros e opositores desaparecidos, em especial os que tombaram no Araguaia. Para isso contaram com não só com a atuação de Jobim, mas também com a Advocacia-Geral da União — onde José Toffoli, hoje no Supremo Tribunal Federal (STF), tratava de endossar pareceres favoráveis à anistia dos torturadores e assassinos que agiram a serviço da Ditadura — e, fora do governo, com o STF, onde Gilmar Mendes vem esgrimindo toscos argumentos na mesma linha de igualar carrascos e vítimas.

Péssimo exemplo
O pior dessa atitude anêmica do governo no trato da questão militar é que os generais e outros oficiais comandantes, diante da impunidade de seus atos de indisciplina, tendem a prosseguir nesse caminho de desrespeito às normas democráticas. Péssimo exemplo para os jovens oficiais, tenentes e capitães, que continuam a ser formados, nas escolas militares, nos moldes da pregação anticomunista e antidemocrática característica da “Guerra Fria” e da Escola Superior de Guerra.

Por outro lado, a presença de tropas brasileiras no Haiti, onde encabeçam a missão da ONU (Minustah), não parece ter servido para outra coisa senão o treinamento para a repressão a distúrbios e motins populares, já exercido em caráter experimental em favelas do Rio de Janeiro, em diversas ocasiões, com resultados desastrosos para a população. Como explicar a criação, em Campinas, da Brigada de Infantaria Leve – Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?

A profunda democratização das Forças Armadas (que implica a reformulação de seus regimentos disciplinares e a reforma das escolas militares), a subordinação das corporações militares à Constituição Federal e à legislação, e a consolidação do Ministério da Defesa, devem ser absoluta prioridade de um governo que se pretenda democrático e popular, ainda que no âmbito do capitalismo liberal. Os crimes cometidos pela Ditadura precisam ser apurados, e seus responsáveis punidos, como vem ocorrendo na Argentina, Chile, Uruguai.

Quanto aos ministros que atacaram o próprio governo, o melhor que Lula tem a fazer é ouvir os manifestantes de 14/1, que pediram, sem rodeios, “Fora, Jobim!”. Reinhold Stephanes, ele próprio um ex-ministro da Ditadura (e de FHC), deve ser convidado a se retirar, assim como os comandantes militares que se amotinaram contra o PNDH 3.

O Brasil tem de acertar suas contas com a Ditadura, ou não teremos democracia digna desse nome.

Pedro Pomar é jornalista e editor da Revista Adusp (Associação dos Docentes da USP)

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